quinta-feira, 12 de maio de 2005

Conversando com o Diabo

– Você existe mesmo?
– Ora, não lembra o que disse o cardeal Ratzinger? “Para os fiéis cristãos, o Diabo é uma presença misteriosa, mas real, pessoal e não-simbólica.”
– Talvez concorde com o último predicado.
– Por quê? – perguntou o Diabo.
– Porque símbolo, reza a etimologia da palavra grega, é o que une, agrega. O antônimo é diabolos, o que desagrega. Desculpe a minha falta de fé.
– Em mim ou no cardeal?
– Nos dois. Na ausência de uma boa dúvida cartesiana, fico com Spinoza: se você, contra a vontade de Deus, induz os seres humanos a praticar o mal, e ainda nos condena à danação eterna, que diabos de deus é esse que o deixa impune e ainda permite que sejamos punidos por você? Afinal, você é inimigo ou cúmplice de Deus?
– Não esqueça, fui criado por Deus.
– Não como demônio, mas como anjo – observei.
– Sim, agora sou um anjo decaído, pois fiz com que a primeira criatura, Adão, se voltasse contra o Criador. Adão tornou-se cativo de meu reino. Jesus teve que morrer na cruz para resgatá-lo.
– Não me venha com esse papo de Mel Gibson – reagi.
– Você bem sabe que Deus tinha o poder de arrancar Adão do reino do mal sem precisar mandar o seu Filho e deixar que sofresse tanto. Qual pai se compraz com o sofrimento do filho? Jesus veio nos ensinar o amor como prática de justiça. E foi vítima da injustiça estrutural que predominava em sua época, como ainda hoje.
– Deus tentou me enganar – queixou-se o Diabo.
– Manteve em segredo o nascimento de Jesus. Mas, à medida que o Filho crescia, fui percebendo quão perfeito ele era. Quis, portanto, tê-lo ao meu lado.
– Você tentou seduzi-lo três vezes e quebrou a cara. Prometeu-lhe os reinos deste mundo, mas ele preferiu o de Deus; mandou que transformasse pedras em pães, mas ele não acedeu à primazia dos sentidos; quis vê-lo voar como os anjos, atirando-se do pináculo do Templo, mas ele optou pelas vias ordinárias, e não pelos efeitos extraordinários.
– Admito que não consegui dobrá-lo aos meus caprichos. Mas desencadeei as forças do mal contra ele, até que morresse na cruz.
– Mas ele ressuscitou, venceu o mal – frisei.
– Sim, Deus me enganou.
– Como assim?
– O homem Jesus era a isca na qual Deus escondeu o anzol da divindade de Cristo. Ao perceber isso, era tarde demais.
– Por que Deus, em vez de sacrificar seu Filho na cruz, não matou você?
– Isso é um segredo entre mim e Deus.
– Não posso acreditar que Deus comparta qualquer coisa com você, como as almas de seus filhos e filhas, e nem mesmo a existência. Ou acha que vou acreditar que a falta de Adão tenha sido mais grave que o assassinato do Filho do Homem na cruz?
– Eu sou a contradição de Deus – vangloriou-se o Diabo.
– Você já leu Robinson Crusoé? Lembra da “catequese” que ele tentou impingir em Sexta-Feira? Este indagou: “Se você diz que Deus é tão forte, tão grande, ele não é mais forte e mais poderoso que o Diabo?” Crusoé confirmou. Então, Sexta-Feira concluiu: “Por que Deus não mata o Diabo para ele não fazer mais maldade?” Embaraçado, Crusoé fingiu que não ouviu.
– O que você responderia? – indagou o Diabo.
– Diria que Deus não pode matar o que não criou. Você é uma criação das religiões arcaicas que dividiam o mundo entre as forças do bem e do mal, o que a Bíblia rejeita, embora alguns políticos atuais queiram justificar seus ímpetos bélicos e suas ambições imperialistas na base desse dualismo.
– Mas eu figuro na Bíblia! – exaltou-se ele.
– O que não significa que de fato exista, assim como Adão e Eva também estão citados lá e nunca existiram. Adão significa “terra” e Eva, “vida”. A Bíblia, como um livro em linguagem popular, antropomorfiza conceitos abstratos. Ou você acha que Elias subiu ao céu num carro de fogo e que existe o dragão citado no Apocalipse?
– Então você não crê na minha existência? Como explica tanto mal no mundo?
– Você mente tanto e tão bem que até faz a gente tender a acreditar que existe. O mal é uma decorrência da liberdade humana. Eternizar o castigo é eternizar o mal. Somos chamados a responder livremente ao amor de Deus. E onde há amor há liberdade, inclusive de se fechar a ele.
– E no inferno, você acredita?
– Fico com Dostoievski, “o inferno é a incapacidade de não poder mais amar”. Borges frisa que “é uma irreligiosidade” crer no inferno.
– Mas eu sou real – insistiu o Diabo.
– Deus não tem concorrente – rebati. – Nós inventamos você para nos eximir de nossas responsabilidades e culpas, por nem sempre corresponder ao que Deus espera de nós.

3 comentários:

  1. Esse texto foi escrito por Frei Betto q é escritor, autor de Treze Contos Diabólicos e um Angélico, que a editora Planeta faz chegar às livrarias neste mês. Esse e outros ótimos texto você encontra na revista Caros Amigos ou no site:
    www.carosamigos.com.br

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